Melhorar a equidade de gênero e de outros grupos sub-representados nos Conselhos Administrativos das companhias vem sendo um dos maiores desafios da governança dentro dos pilares ESG. Neste esforço, se destacam as iniciativas da B3 e de outras Bolsas no exterior, no sentido de estimular a diversidade de mais mulheres, negros, PcDs, indígenas, LGBTQIA+ etc. em cargos de alta liderança nas grandes empresas. Contudo, muitas pesquisas apontam que a questão ainda precisa evoluir. Falta adesão, vontade corporativa e aceleração no ritmo necessário das mudanças.
Para tirar a governança do âmbito interno das organizações e transformá-la uma questão externa, a B3 propôs um novo Regulamento de Emissores — dotado de dois anexos: A (Tabela de Prazos) e B (Medidas ASG) — aprovado pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e em vigor desde 19 de agosto deste ano. Essa nova proposta torna sem efeito as normativas anteriores CVM 135 e CVM 160, prometendo ser uma versão mais enxuta e de fácil entendimento.
A tendência do investidor — não somente dos mais jovens (geração X e millennials) — é promover investimentos sustentáveis, que fluam por veias mais inclusivas, porque desejam contribuir com avanços por diversidade, equidade e inclusão, superar a crise climática e tornar o planeta um lugar melhor para todos viverem. Pesquisa deste ano da Delloite aponta que 47% de empresas de venture capital afirmam que seus investidores querem mais informações ESG (boas práticas ambientais, sociais e de governança) das empresas nos últimos 12 meses, se comparadas aos dados de 2020 (41%) e 2018 (36%).
Os critérios ESG instituídos em 2022 trouxeram uma série de exigências em relação às práticas ambientais, sociais e de governança das empresas brasileiras. Alguns dados são assombrosos e mostram a importância dessa medida: mulheres representam 51,8% da população brasileira, mas apenas 37,4% dos cargos gerenciais e 13,6% dos conselhos de administração são ocupados por elas (IBGE, 2022); pretos e pardos são 56,1% dos brasileiros, mas ocupam 37,4% das vagas gerenciais e 28,8% dos conselhos (IBGE, 2022); apenas 0,5% dos executivos das empresas são pessoas com deficiência (Ethos, 2020).
O artigo 3º do Anexo ASG (Ambiental, Social e Governança em português) considera que devem compor o Conselho Administrativo ou a Diretoria Estatutária das empresas listadas na Bolsa brasileira, pelo menos uma pessoa do gênero feminino, independente do sexo de nascimento, e um membro dos grupos minorizados. O primeiro membro diverso deve ser integrado ao conselho administrativo em 2025 e o segundo em 2026. O prazo será alterado para quem fizer o IPO após as novas medidas, devendo adotar um membro diverso no ano subsequente ao ingresso na listagem da B3 e a segunda pessoa, no ano subsequente. Ao estabelecer metas concretas para aumentar a participação de grupos sub-representados, o anexo promete promover igualdade de oportunidades dentro das corporações.
Não há obrigatoriedade de as empresas adotarem integrantes de grupos diversos nos conselhos, mas terão de se justificar publicamente. É o critério do “Pratique ou Explique”, que traz flexibilidade e transparência para a governança corporativa, ao permitir à companhia justificar porque não quis adotar determinada prática recomendada. Segundo o artigo 2º do Anexo ASG, “o atendimento no modelo ‘pratique ou explique’ deverá ser realizado mediante apresentação de evidências da adoção, ou de justificativa para eventual não adoção, total ou parcial, de cada medida, no formulário de referência”. Esse modelo vem sendo aplicado há duas décadas na Europa, com sucesso, tendo a vantagem de abrir um diálogo com as partes interessadas da empresa (investidores, clientes, profissionais, parceiros, comunidades, governo etc.)
As regras da B3 guardam similaridade com as da Nasdaq (Regras 5605 ou 5606), segunda maior Bolsa de Valores do mundo, com foco somente em empresas de tecnologia. A Nasdaq propôs que as companhias listadas tenham conselhos administrativos compostos por membros de grupos sub-representados, medida aprovada em 2021 pela SEC (Securitizes and Exchange Comission), que regula o mercado de capitais norte-americano. A regra entrou em vigor em agosto deste ano e já alimenta uma grande polêmica: trará igualdade corporativa ou será questionada como inconstitucionalmente discriminatória contra os atuais ocupantes dos conselhos (homens brancos)?
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As investidas judiciais até o momento fracassaram, mas há uma ação em tramitação de 17 procuradores gerais estaduais contestando a regra por instituir o sistema de cotas, o que é inconstitucional no caso americano, tramitando no Tribunal de Apelações. A primeira magistrada negra da Suprema Corte dos EUA, Ketanji Brown Jackson, foi objetiva sobre a questão: “considerar a raça irrelevante na lei,não significa que ela seja irrelevante na vida”. A Nasdaq especifica que cada empresa tenha dois representantes que se autoidentifiquem como diversos (uma mulher e um membro de grupos sub-representados). As companhias também terão de divulgar publicamente estatísticas, a composição de diversidade dos conselhos ou explicar as razões para deixar de aderir, assim como a B3.
Nos Estados Unidos, estudo do Institucional Stakeholder Services aponta que 10% dos diretores de empresas pertencem a uma minoria étnica, uma representatividade baixa, levando em conta que 39,9% dos norte-americanos não são brancos. No caso de intersecções de múltiplos marcadores sociais, caso de mulheres negras, por exemplo, esse total cai para menos da metade nos conselhos de administração das empresas da Fortune 500. Somente 50% das empresas Fortune 100 divulgam composição de gênero e étnica de seus conselhos de administração. A SEC americana incentiva uma divulgação mais detalhada das empresas listadas em Bolsa sobre a diversidade dos conselhos das empresas, com base em informações voluntárias e autoidentificadas, assim como suas políticas.
Mais à frente dos EUA, países da Europa possuem percentuais expressivos de representação gênero significativo. O primeiro país a introduzir uma cota de gênero proporcional nas empresas foi a Noruega, em 2003, sendo que os demais países da União Europeia substituíram as regulamentações voluntárias, pela sua ineficácia e preconceito arraigado, por quotas estabelecidas em regramentos legislativos. O Reino Unido é outro exemplo, tendo adotado em 2022 novas regras para ampliar a diversidade nos conselhos administrativos e estipulou que 40% dos membros devem ser mulheres para empresas FTS100, estando à frente da Europa, que apresenta 38,9% do índice XBox europeu 600. Entre os latino-americanos, o México adotou cotas de gênero voluntárias e aumentou de 7,3% para 9% a presença feminina nos conselhos das empresas em cinco anos, o que é considerado baixo.
Uma segunda seção do Anexo ASG (artigo 5º) trata de estabelecer no estatuto social ou nas políticas de indicação do conselho de administração das empresas o emprego de critério ESG para indicar membros, sem deixar de revisar experiências e conhecimento dos pilares de diversidade. Este tópico está lastreado pelo potencial da cultura da organização em poder avaliar potenciais candidatos a membros aos conselhos de administração, substituindo origens educacionais e experiências semelhantes e adotando novos critérios de seleção mais plurais, nos quais estejam presentes novas habilidades e atributos.
A terceira mudança proposta no Anexo ASG (artigo 6º) trata de políticas de remuneração e indicadores de desempenho ligados ao ESG, que devem ter vínculo com o cumprimento de metas ESG, um tema delicado, embora seja uma tendência, mas ainda pouco aplicada no mercado. Um exemplo nacional vem da EDP Brasil, que iniciou o modelo de remuneração variável em 2015, incorporou o ESG e hoje seu modelo atravessou fronteiras. Para que isso seja viável é necessário vincular metas financeiras com o engajamento ESG, sem receio de estar promovendo uma “transgressão corporativa”.
Como qualquer documento, há ainda oportunidades orgânicas de aprimoramento. Os indicadores ESG definidos pela CVM são tímidos e concentraram-se majoritariamente em governança corporativa. Faltam métricas socialmente avançadas de emissões, uso de recursos naturais, trabalho decente etc. O descumprimento das diretrizes também não acarreta punições efetivas para as empresas, o que é ruim. A ausência de fiscalização rigorosa compromete a eficácia do Anexo ASG como instrumento de transformação.
Dito isso, o momento atual se assemelha às “utopias futuras e passadas”, como sempre explica Paulo Freire, pois apresenta um ideal de sustentabilidade empresarial, porém com instrumentos ainda pouco efetivos para torná-lo realidade no presente. Para que tais diretrizes extrapolem a esfera das boas intenções e gerem mudanças concretas, são necessários mecanismos rigorosos de implementação, monitoramento e sanção das práticas corporativas. Caso contrário, o anexo corre o risco de ser apenas uma ‘promessa sonhadora’, como diria Freire, que não se materializa na vida real.
YUN KI LEE – Sócio da Lee, Brock, Camargo Advogados, mestre em Direito Econômico pela PUC-SP e professor de pós-graduação em Direito
PATRICIA BLUMBERG – Diretora de ESG da Lee, Brock, Camargo Advogados e Master em Digital Communication pela Westminster Kingsway College London