Foram um turbilhão de promessas corporativas contra o racismo e pela busca da equidade racial depois da convulsão causada pela morte cruel de George Floyd, em maio de 2020, por um policial branco por sufocamento. No mesmo ano, o brasileiro negro João Alberto Freitas era espancado e asfixiado por seguranças de uma grande rede de supermercados de Porto Alegre.
Dois anos depois desses fatos impactantes, três índices publicados neste ano – Corporate Racial Equity Tracker, Black Equity Index e Índice ESG de Equidade Racial Setorial – podem mensurar o progresso das empresas em atrair talentos negros, reter esses profissionais, acelerar suas carreiras e incluí-los em cargos de liderança.
Se há dificuldades para o próprio poder público em reconhecer, discutir e combater a existência do racismo estrutural no Brasil e no mundo, essa questão também se faz presente no mundo corporativo, mesmo nas empresas imbuídas de compromissos ESG, de boas práticas ambientais, sociais e governança. Geralmente, esse racismo passa por um processo de negacionismo. É o que a professora norte-americana Charlice Hurst chama de a síndrome do “aqui, não”, isto é, se o racismo existe, é “lá fora”, além dos muros da empresa, e, se há registro interno, é tão restrito que não merece a atenção do C-Level da companhia.[1]
Historicamente, o racismo brasileiro foi diluído no conceito de “democracia racial”, criado pela mistura das três raças originárias (negros, brancos e indígenas), que teriam formado uma espécie de “convivência harmônica”. Essa tese formulada por Gilberto Freyre, em “Casa-grande & senzala”,[2] acabou “romantizando” o racismo e enfraquecendo o debate sobre a exclusão e a discriminação dos pretos e pretas na sociedade brasileira e, portanto, no mercado de trabalho. O racismo é um tema complexo, como explica o professor e escritor Silvio Almeida, por ser um processo histórico e político que “cria as condições sociais para que, direta ou indiretamente, grupos racialmente identificados sejam discriminados de forma sistemática”.[3]
Mais antigo dos três índices, o Corporate Racial Equity Tracker – 2022, da Just Capital[4] constatou a evolução da transparência entre os 100 maiores empregadores dos Estados Unidos frente às suas ações e compromissos para promover a justiça racial corporativa. O levantamento utiliza 23 métricas em 6 dimensões específicas de equidade racial: (1) Salarial, (2) Racial/Dados de Diversidade Étnica, (3) Programas de Educação e Treinamento, (4) Resposta ao Encarceramento em Massa, (5) Investimentos Comunitários e (6) Políticas Antidiscriminação. A pesquisa demonstra, entre outros dados, que as empresas estão em etapas diferentes de evolução, mas houve avanços nos índices sobre a diversidade na força de trabalho, conselho administrativo e equidade salarial. Em contraponto, apenas 7% divulgam sua taxa interna de contratação ou promoção por raça/etnia e somente 22% apresentam os resultados reais da análise da equidade salarial por raça/etnia. Na listagem da Just Capital, há muitas transnacionais que atuam no Brasil.
Além da Just Capital, o mercado norte-americano conta ainda com outra ferramenta para medir a equidade étnico-racial nas empresas, o Black Equity Index (BEI),[5] criado pela Coqual, um think tank global sem fins lucrativos, que trabalha na pesquisa de seis quesitos: avanço, responsabilidade, apresentação, investimento, sustentabilidade e engajamento público.
O alcance da pesquisa abarca companhias que empregam no total 230 mil pessoas nos EUA e 700 mil em todo o mundo. Sobre o Brasil, a pesquisa “Equity and Ethnicity at Work: A Global Exploration” constata que os “profissionais negros no Brasil são quase quatro vezes mais propensos do que profissionais brancos a dizer que se sentem discriminados no trabalho, na maioria das vezes. Eles também são o grupo racial mais propenso a dizer que vê preconceito étnico no mundo corporativo e a se sentirem silenciados ao discutir experiências relacionadas à raça ou etnia no trabalho”.
No Brasil, a Associação Pacto da Equidade Racial, voltada a promover ações antirracistas no ambiente corporativo, lançou o Índice ESG de Equidade Racial Setorial (IEERS),[6] que busca mensurar o total de contratações e promoções de pessoas pretas, utilizando como base os dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) de 2020. O percentual entre profissionais e representatividade da população negra local é um dado importante na composição do índice. Assim, se temos 56% de pretos entre a população brasileira, na Bahia, Amazonas e Pará, esse percentual chega próximo a 80% e nos estados do Sul pode cair para 25%.[7] Também são métricas importantes as ações afirmativas e os investimentos em equidade racial.
O Índice ESG de Equidade Racial Setorial também utiliza 25 subsetores da economia com base em critérios estabelecidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), empregando as equivalências de -1 (mais branca) até +1 (mais preta), divididos nos segmentos ocupacionais: não-liderança, gerência e diretoria. As empresas são separadas de acordo com área de atuação e o cálculo leva em conta o índice de equidade de ocupações e subsetores do IBGE, resultando em um IEER para cada faixa da economia. Os segmentos com melhores resultados são transporte e comunicação, seguido pelo comércio, administração de imóveis e varejista e serviços de alojamento.
Vale registrar a sub-representação de negros na advocacia brasileira. Pesquisa realizada em 2019 pelo Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT) apontou a presença de menos de 1% dos advogados e sócios pretos nos grandes escritórios do Brasil, mesmo com mais de 1,4 milhão de profissionais inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). A explicação para a falta de inclusão residia na formação precária dos profissionais pretos porque vinham de faculdades de direito com baixa avaliação e por falta de fluência na língua inglesa. A busca pela equidade racial nos últimos três anos, com a adoção de ações afirmativas pelas firmas, ampliou a presença de advogados pretos e pretas nas grandes bancas, que saltou para 11% neste ano.
Nessa mesma linha das pesquisas raciais para mensurar o quão justas e inclusivas estão se tornando as empresas, vem crescendo também a preocupação étnica de acionistas ativistas, que têm proposto aos conselhos das corporações norte-americanas a realização de auditorias de equidade racial. O total de pedidos no primeiro semestre deste ano já é maior do que todos os formulados no ano passado. Cresce, pois, a pressão para instar empresas a promover auditorias independentes sobre equidade racial no sentido de mensurar suas políticas, práticas e esforços antirracistas em relação a todos os seus stakeholders (colaboradores, sócios, trabalhadores, investidores, clientes, fornecedores, parceiros negociais, sociedade, influenciadores etc.) e verificar efetivamente se há diversidade, equidade e inclusão.[8]
Empresas que desejam obter índices elevados nas métricas ESG para compor portfólios de grandes fundos e chamar a atenção de investidores precisam expor sua gestão sobre seu capital humano e mostrar quanto de engajamento tem as partes interessadas em seu negócio para que desempenhem um papel socialmente benéfico para toda a sociedade.
A auditoria de equidade racial não se restringe à checagem. Pode ajudar a identificar elementos de racismo estrutural dentro de empresas, que passam despercebidos como tal, e a atingir seu objetivo estratégico de justiça racial. Em uma dessas auditorias, identificou-se, por exemplo, que um grande grupo financeiro ajudava a reembolsar acordos em que a polícia era condenada por brutalidade contra cidadãos pretos.
Seria quase como uma contribuição para a perpetuação de abusos policiais, um tema delicado nos EUA, principalmente, para o movimento negro. Vale ressaltar que não há nos Estados Unidos obrigatoriedade para a realização deste tipo de auditoria de equidade racial, seja por parte da Securities and Exchange Commission (SEC) ou de bolsas de valores para as empresas de capital aberto, mas o requisito pode vir a ser adotado em futuro próximo.
A amplitude das auditorias de diversidade, equidade e inclusão é bastante extensa. Alguns se concentram apenas em questões numéricas. Outros tentam descobrir preconceitos e suas percepções entre funcionários e gestores. As fontes desses dados podem incluir relatórios de pesquisa secundária, bem como pesquisas e entrevistas direcionadas. Um dos benefícios destacados de uma auditoria neste sentido é de que os dados coletados podem ser usados para comparar a organização em relação a outras, além de cumprir as metas estipuladas.
Já existem ferramentas tecnológicas com uso de Inteligência Artificial para ajudar as corporações nesse processo. A Ferramenta de Auditoria de Diversidade (DAT), por exemplo, foi desenvolvida no Canadá para investigar as práticas no setor de comunicações e Tecnologia (TIC) e refinada através do estudo em outros setores de emprego, inclusive o de serviços financeiros, serviços policiais, educação e saúde. A ferramenta inicial tinha o objetivo de mensurar informações sobre os negros no setor de TIC e também as barreiras e estratégias destinadas a aumentar a sua participação. Entrevistas com organizações de setor, juntamente com pesquisas secundárias, identificaram práticas para elevar a participação e impulsionar o avanço.
Esses resultados foram usados para criar o DAT, a fim de que organizações avaliem suas políticas e práticas. As seis categorias do DAT catalogam sistemicamente as maneiras pelas quais uma organização pode comunicar seu compromisso de aumentar a diversidade, equidade e inclusão em uma série de diferentes níveis, como: liderança e governança, práticas transparentes de recursos humanos, qualidade de vida e cultura organizacional, mapeamento da diversidade, integração da diversidade em toda cadeia de valor e o desenvolvimento do pipeline.
A injustiça social aliada à desigualdade econômica dos trabalhadores pretos e pretas tem levado grandes conglomerados a formalizar compromissos pela equidade racial. A BlackRock, por exemplo, um das maiores gestoras de ativos do mundo e defensora de um capitalismo de stakeholders, anunciou aumento de 30% na proporção de funcionários negros, duplicação de líderes seniores e a realização voluntária de uma auditoria sobre equidade racial em suas operações.
Certamente essa decisão, quando concretizada, terá um impacto positivo nas empresas com propósitos sustentáveis em todo o mundo. Mas, a despeito das promessas e do avanço medido pelas pesquisas, fica o importante alerta de Hurst de que “ainda carrego o conhecimento e a dor da realidade de que o racismo é generalizado, mas eu, para emprestar novamente [frase] de [Paul]Dunbar, ‘deixo o mundo sonhar de outra forma’”.
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[1] Disponível em https://ssir.org/articles/entry/the_not_here_syndrome.
[2] FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. Brasília: Ed. UnB, 1963.
[3] ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.
[4] Disponível em https://justcapital.com/.
[5] Disponível em https://coqual.org/black-equity-index/.
[6] Disponível em https://planin.com/pacto-de-promocao-da-equidade-racial-lanca-indice-setorial-inedito/.
[7] Disponível em https://geoftp.ibge.gov.br/cartas_e_mapas/mapas_do_brasil/sociedade_e_economia/mapas_murais/brasil_pretos_pardos_2010.pdf.
[8] Disponível em https://news.bloomberglaw.com/us-law-week/analysis-race-related-shareholder-proposals-rise-in-h1-2022.
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YUN KI LEE – Sócio da Lee, Brock, Camargo Advogados, mestre em Direito Econômico pela PUC-SP e professor de pós-graduação em Direito
SANTAMARIA NOGUEIRA SILVEIRA – Jornalista, gerente de conteúdo da LBCA e Doutora em Comunicação Social pela USP.
PATRICIA BLUMBERG – Diretora de ESG da Lee, Brock, Camargo Advogados e Master em Digital Communication pela Westminster Kingsway College London