Diante de um cenário macroeconômico fluido, movido por grandes alterações, ganha importância o conceito da avaliação de dupla materialidade na esfera do ESG (boas práticas ambientais, sociais e de governança), impulsionado pela sua incorporação em estruturas regulatórias como da Diretiva de Relatórios de Sustentabilidade Corporativa (CSRD) da União Europeia.[1]
A partir deste ano, vigora a obrigatoriedade de publicação dos relatórios de sustentabilidade para empresas sujeitas à NFRD (Diretiva de Relatórios Não financeiros), relativos ao ano fiscal de 2024. Pela primeira vez, revelarão como o conceito da dupla materialidade vem sendo aplicado, estabelecendo um possível padrão.[2]
Em seu desenvolvimento, a CSRD ampliou a Diretiva de Relatórios Não Financeiros (NFRD) de 2017, determinando que as grandes corporações divulgassem suas práticas ESG, dentro da ótica da dupla materialidade, ou seja, a sustentabilidade corporativa não está mais restrita aos seus resultados financeiros, foi ampliada, incluindo os impactos ambientais e sociais de suas operações.
A CSRD exige que todas as empresas, com exceção das microempresas, relatem os riscos financeiros dos fatores ESG e como os fatores ambientais, sociais e de governança impactam sua materialidade financeira, assumindo o quesito da dupla materialidade. É como se as empresas, em sentido figurado, precisassem manter um olho no gato e outro no peixe.
O termo “materialidade” surgiu na contabilidade financeira, mas acabou sendo incorporado à estratégia de sustentabilidade/ESG dentro dos respectivos relatórios, trazendo um elemento novo de abordagem. A materialidade interna ocorre quando há um impacto financeiro da empresa que atinge o desempenho corporativo, perspectivas futuras e fatores ESG.
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Um exemplo está em uma seguradora que emite apólices de seguro climático para produtores agrícolas em uma região que, a cada ano vem sendo mais atingida por secas severas em decorrência da crise climática, podendo se transformar em um risco material para a seguradora.
A materialidade de impacto, também chamada de materialidade externa, ocorre quando o impacto das atividades da corporação afeta as partes interessadas ao atingir o meio ambiente e a sociedade. Um exemplo, são empresas têxteis que fazem uso intensivo de água, especialmente nos processos de tingimento, podendo contribuir para levar à escassez hídrica na região onde está instalada. A saída pode estar em implantar medidas de reuso de água para mitigar o impacto ao ambiental e à comunidade.
Na busca pela perspectiva da dupla materialidade é importante levar em conta a opinião dos stakeholders (partes interessadas) e a responsabilização da empresa diante de cada um deles, sejam clientes, investidores, trabalhadores, parceiros negociais, comunidade, governos, agências reguladoras, mídia etc. A dupla materialidade franqueia aos stakeholders acesso aos dados sobre o impacto das empresas nos pilares sociais e ambientais e aos investidores, a possibilidade de mapear os riscos financeiros, relacionados aos temas da sustentabilidade, consolidando a confiança das partes interessadas.
A dupla materialidade – que envolve a decisão de adotar soluções que consideram os impactos financeiros e ambientais – se divide em materialidade financeira e materialidade de impacto. A dupla materialidade ESG acontece quando a empresa consegue relatar os impactos de cada tópico material em seu modelo de negócios e cadeia de valor. Uma empresa que emprega a dupla materialidade é a Siemens para analisar e identificar áreas que geram impactos na sua sustentabilidade.[3]
De acordo com normas como do ISSB [International Sustainability Standards Board] e do ESRS [European Sustainability Reporting Standards], um evento ou assunto tem impacto ou materialidade ambiental se estiver conectado a impactos significativos reais ou com alta probabilidade de ocorrer no meio ambiente e/ou na sociedade em um curto, médio ou longo prazo. Por exemplo, se todos que dirigem um carro pararem de usar transporte movido a combustíveis fósseis e passarem a usar veículos elétricos (VEs), isso terá um impacto ambiental e social significativo, tanto em nível social quanto para empresas específicas na cadeia de valor automotiva e de combustíveis.[4]
Para importantes organizações, que desenvolvem frameworks de regulação ESG, como a ISSB, é fundamental envolver os fatores ESG nas questões da dupla materialidade empresarial, porque permitem mensurar impactos, riscos e oportunidades.[5]
Além disso, conceitos emergentes como a materialidade dinâmica — que reconhece a mutabilidade dos temas ESG conforme o contexto econômico e regulatório — têm se tornado cada vez mais relevantes. Modelos atualizados de avaliação permitem revisões periódicas da matriz de materialidade, com apoio de ferramentas tecnológicas que conectam dados ESG a indicadores estratégicos e simulam cenários de impacto, reforçando a tomada de decisão baseada em risco e sustentabilidade.
Contudo, mesmo tendo como retaguarda a CSRD e sendo considerada um avanço na sustentabilidade, a dupla materialidade é um conceito polêmico, a exemplo de outros termos ligados ao ESG, ao gerar entendimentos diversos, inconsistências e interpretações subjetivas.
Essas polêmicas estão centradas em alguns pontos. Um deles diz respeito a interpretações que contemplem apenas os interesses das partes interessadas. De outra perspectiva, há pontos positivos na dupla materialidade. Sua aplicação é considerada uma medida fundamental para evitar o greenwashing, ou seja, uma prática enganosa, na qual organizações exageram, distorcem ou falsificam suas iniciativas ambientais ou sociais para parecerem mais sustentáveis do que realmente são. Isso pode implicar na exibição de certificações falsas e promover divulgações seletivas, nas quais as práticas sustentáveis são destacadas e as negativas são invisibilizadas.
A dupla materialidade permite priorizar as iniciativas ESG. Se a empresa usa energia fóssil, terá impactos ambientais na sua operação e na sua reputação futura. Ao olhar pelo viés da dupla materialidade, detectará uma interconexão entre os fatores de sustentabilidade em sua cadeia de valor. Se a opção for por energia limpa (eólica ou solar), os custos podem ser maiores no início, mas os benefícios financeiros, sociais e ambientais futuros serão concretos, inclusive, auxiliando na transição para uma economia descarbonizada e para a mitigação das mudanças climáticas.
As avaliações de dupla materialidade auxiliam na priorização de temas e de estratégias ESG. Por exemplo, a Agência Nacional de Águas e Saneamento (ANA) avalia que o setor do agronegócio brasileiro consome 70% das águas no país.
Diante desse cenário, uma empresa do agro pode optar pela dupla materialidade ao fazer uso da coleta de água da chuva para usar nas plantações, sistema de gotejamento ou práticas conservacionistas para proteger o solo e evitar a evaporação mais rápida, medidas que reduzirão os custos com recursos hídricos e colaborarão com o meio ambiente e comunidades locais, além de cortar custos da produção futuramente.
A dupla materialidade ajuda a aplicar a cultura da responsabilização, avaliando de forma holística como os fatores ambientais, sociais e de governança impactam a saúde financeira de uma organização e como as atividades dessa organização impactam o meio ambiente e a comunidade. A incorporação da dupla materialidade é considerada um valor estratégico para as empresas porque permite mitigar riscos, aumentar a resiliência e fortalecer laços com os stakeholders e as cadeias de suprimentos.
[1] A divulgação dos relatórios da CSRD pode sofrer um adiamento se for aprovado, ainda neste ano, o pacote Omnibus da União Europeia, que simplifica as regulamentações de sustentabilidade da UE, incluindo a CSRD, no que tange às empresas abrangidas, mudança de cronograma, escopo e estrutura dos relatórios.
[3] https://planbe.eco/en/blog/double-materiality-in-esg-a-competitive-edge-in-sustainable-business/
[4] https://www.brightest.io/double-materiality-definition
Patricia Blumberg – Diretora de ESG da Lee, Brock, Camargo Advogados e Master em Digital Communication pela Westminster Kingsway College London
Yun Ki Lee – Doutorando em Direito Internacional pela USP, mestre em Direito Econômico pela PUC-SP, membro efetivo da Comissão Especial de Comércio Exterior da OAB-SP. Presidente da Overseas Korean Traders Association – São Paulo Branch, vice-presidente para América do Sul da World Overseas Korean Traders Association e advogado-sócio da Lee, Brock Camargo Advogados