A Copa do Mundo da Fifa (masculina) no Catar (país anfitrião) avança e torna mais nítida sua contradição diante dos pilares ESG (boas práticas ambientais, sociais e de governança). Ao mesmo tempo que assume o compromisso de ser 1ª Copa neutra em carbono, atendendo ao pilar “E”; deixa lacunas quanto ao pilar “S”, no que tange à diversidade e inclusão e condições de trabalho dos migrantes que ajudaram a levantar a infraestrutura do evento, levando à reação de várias seleções na defesa dos direitos humanos e tratamento justo e equânime dos grupos minorizados.
À medida que o tempo se esgota e cresce a necessidade de o planeta estar em consonância com as metas do Acordo de Paris — atuando contra mudanças climáticas e evitando as emissões de CO2 e aquecimento acelerado da temperatura da Terra –, aumentam os holofotes sobre a Copa do Mundo para responder à demanda mundial por sustentabilidade. É o evento esportivo mais popular do Terra, com uma audiência de cerca de 4 bilhões de pessoas, a metade da população planetária, em diferentes plataformas. Na edição desse ano, está reunindo 32 seleções nacionais e cerca de um milhão de turistas, número inferior aos três milhões de estrangeiros que visitaram a Rússia durante a última Copa de 2018, provavelmente pelas peculiaridades culturais do Catar, que também são relevantes.
As cobranças em torno do pilar ambiental vêm sendo sustentadas pela promessa da Fifa e do Comitê do Catar de realizar uma Copa que seja net-zero. Para cumprir tal compromisso, vem sendo necessário superar muitas contradições em uma das menores nações do mundo, que já convive com a crise climática e que construiu sua riqueza com base em combustíveis fósseis, mas que deixou o cartel da Opep, depois de 60 anos de participação, para privilegiar o comércio de gás natural. O país vem investido no setor desde 1987 e, hoje, é o maior player exportador de GNL, GTL e hélio, que são combustíveis mais limpos, embora fósseis, e com expansão garantida depois da crise energética gerada pela invasão da Ucrânia.
Pelo inventário da Fifa, desde o início da construção dos estádios no Catar (2010) até a realização do evento, o total de emissões desta Copa será de 3,6 MtCO2 (milhões de toneladas métricas), geradas por: “viagens (51,7%), acomodação (20,1%), construção de instalações permanentes (18,0%) e construção de instalações temporárias (4,5%). Dos 5,7% restantes do total de emissões, os principais impulsionadores são logísticos, alimentos e bebidas, produção de transportadores de energia, materiais e mercadorias”[1]. Os organizadores prometeram, ainda, que quaisquer emissões inevitáveis serão compensadas.
Promover um evento neutro em carbono é assegurar que em todas as etapas de sua operação não haverá emissão de carbono para atmosfera, podendo os organizadores lançarem mão da compensação das emissões por meio de financiamentos de projetos verdes. Atualmente, há inúmeros portfólios voltados ao combate da crise climática, privilegiando a preservação de florestas, regeneração de áreas degradadas, conservação da biodiversidade, atuação na produção de energia limpa etc. Cada crédito de carbono equivale a uma tonelada de CO2 que não será emitida para atmosfera, ao custo de US$10 a US$12, no chamado mercado voluntário de crédito de carbono.
O Comitê da Copa escolheu uma agência do próprio Catar, a Global Carbon Council (GCC), para fornecer os créditos de carbono e compensar as emissões do Campeonato Mundial de Futebol. O GCC já teria emitido 133 mil créditos de carbono desde 2020. Contudo, o mercado de crédito de carbono ainda atua sem regulação, dificultando que os dados sejam plenamente mensuráveis e verificáveis. As negociações para a Copa envolveram compensações com base em projetos verde, como parques eólicos na Turquia e Sérvia, usina hidrelétrica na Turquia, além de viveiros de plantas no Catar, região desértica onde predomina uma temperatura severa de 50 graus centígrados, exigindo um esforço de irrigação a altíssimos custos.
Diante desses dados, o número das pegadas de carbono da Copa do Catar vem sendo questionado por algumas ONGs, como a Carbon Market Watch[2], uma associação sem fins lucrativos especializada em políticas de precificação de carbono, com atuação na Europa. Para a organização, os créditos de carbono adquiridos da Global Carbon Council apresentariam baixo nível de integridade ambiental, com exceção de um projeto de energia eólica na Turquia. O Catar teria subestimado a pegada da construção de seus 7 estádios, que teriam gerado 1,6 milhão de tonelada de CO2 e não 200 mil toneladas, como anunciado. O pesquisador da CMW, Gilles Dufrasne, comenta que “as evidências sugerem que as emissões desta Copa do Mundo serão consideravelmente maiores do que o esperado pelos organizadores e os créditos de carbono adquiridos para compensar essas emissões provavelmente não terão um impacto suficientemente positivo no clima“[3]. Criou-se uma contenda entre a Fifa e a ONG, que leva em conta as emissões dos estádios com base em seu uso no torneio. A Fifa vê como um legado de médio e longo prazo para as comunidades e o Catar promete transformar os estádios em escolas, comércio e até em mesquitas.
Essa discussão sobre os “elefantes brancos” envolvendo grandes estádios que se mostram inúteis depois da Copa, em um mundo que precisa economizar recursos e ser mais sustentável, nos soa familiar. Temos exemplos da Copa do Mundo de 2014, no Brasil, que deixou muitas arenas com elevados custos de manutenção e sem conseguir atrair jogos, shows, eventos ou outros tipos de uso. Temos “elefantes” em Cuiabá (hoje escola), Manaus, Natal e Brasília. Mesmo em cidades como o Rio de Janeiro, com forte tradição futebolística, a arena Mané Garrincha resulta em prejuízo anual acima de R$ 6 milhões anuais, recursos públicos que poderiam ser mais úteis em outras áreas sociais prioritárias. Destoa positivamente desse cenário a proposta do Catar de construir o Estádio 974 (código telefônico do país) com contêiners de navio e capacidade para 40 mil torcedores. Sem dúvida é um legado sustentável, mas não se sabe ainda se sua transferência para os Estados Unidos/México/Canadá, países-sede da próxima Copa, será economicamente viável.
Diante de tais fatores, fica claro que a Copa vive um impasse envolvendo sua comunicação versus sua prática sustentável. Como diria o mestre Machado de Assis: “Palavra puxa palavra, uma ideia traz outra, e assim se faz um livro, um governo, ou uma revolução, alguns dizem que assim é que a natureza compôs as suas espécies”. O mundo questiona se estamos ou não diante de um episódio de greenwasing, no qual não haveria mitigação do impacto ambiental no nível que foi divulgado. Essa jornada entre o ESG e a comunicação é de aprendizado, no qual algumas lições são fundamentais. Entre elas, garantir que os dados sobre sustentabilidade sejam precisos e transparentes. Esse tipo de comunicação exige detalhamento e, se possível, comprovação científica, para evitar brechas que levem à fissura na credibilidade. Também é fundamental ter a noção de que o desempenho sustentável pode apresentar equívocos, desde que haja compromisso de correção de rota.
Na Copa, além do pilar “E”, o pilar “S” também se apresenta como uma preocupação para as partes interessadas (stakeholders), desencadeando reações de várias seleções, o que é bastante incomum no histórico dessa competição, pela defesa da diversidade e inclusão. Algumas seleções europeias (Alemanha, Inglaterra, Dinamarca, País de Gales, Bélgica, Holanda e Suíça) estavam empenhadas em usar a braçadeira de capitão (One Love) com as cores do arco-íris para chamar atenção sobre a discriminação e criminalização da homoafetividade no Catar, mas foram impedidas pela organização. Essa decisão levou os jogadores da seleção alemã a tirar foto oficial do time, na primeira partida da Copa, tapando a boca numa referência de que não puderam defender os valores de inclusão em que acreditam. A atitude deixa uma mensagem clara de que a nova geração de atletas tem consciência social, ambiental e defende mais diversidade e inclusão no mundo. A média de idade de todas as seleções é de 26,4 anos, ou seja, são da geração Millennials (nascidos entre 1981 a 1999) e querem fazer a diferença no mundo.
A questão trabalhista também entrou no radar das seleções e demais stakeholders na primeira Copa do Mundo em um país árabe. Para construir sete estádios, reformar o aeroporto, construir o metrô de superfície, hotéis, novas estradas e outras obras, o Catar investiu de US$ 100 a US$200 bilhões e contratou milhares de trabalhadores da Índia, Paquistão, Nepal, Bangladesh, Siri Lanka e países de África, que constituem 90% da força de trabalho no país. Não se sabe ao certo quantos trabalhadores sucumbiram nos canteiros de obras sob o sol severo da península arábica (50 graus centígrados), vítimas de ataques cardíacos ou de acidentes de trabalho. Os alojamentos foram considerados insalubres, as jornadas de trabalho longas e as refeições insuficientes [4]. O Catar rebate e afirma que promoveu uma reforma trabalhista, suspendeu o trabalho em períodos mais quentes do verão e que sua nova lei estabeleceu amparo ao trabalhador migrante que sofresse acidente de trabalho ou viesse a morrer. A situação adversa dos trabalhadores migrantes no Catar foi retratada pela mídia e relatórios de ONGs de Direitos Humanos, como a Equidem.
Os atletas da Copa não ficaram indiferentes. Os jogadores do time da Austrália, por exemplo, gravaram um vídeo sobre a questão dos direitos humanos dos trabalhadores migrantes no Catar (salário justo, bem-estar, saúde, segurança , tratamento digno etc.) incluindo uma autocrítica: “Esses trabalhadores migrantes que sofreram não são apenas números, como os migrantes que moldaram nosso país e nosso futebol” [5].
Igualmente, os jogadores da seleção holandesa, três vezes vice-campeã do mundo, também se posicionaram e promoveram uma confraternização após o primeiro treinamento da equipe na Copa, com um grupo de trabalhadores migrantes no Catar. O técnico holandês Louis Van Gall disse que a equipe quer ser campeã do torneio, mas tem um olhar muito além do futebol. A seleção holandesa também vai leiloar todas as camisas que utilizar na Copa do Mundo e doar os lucros aos trabalhadores migrantes do Catar.
Para destacar a importância da inclusão, na sua estreia na Copa, os jogadores da Inglaterra se ajoelharam numa manifestação contra a discriminação e o racismo, nem sempre apoiados pela sua torcida. Esse gesto já havia sido utilizado nos Campeonatos Europeus de 2021 e 2022, na forma de apoio à luta antirracista surgida depois da morte do norte-americano George Floyd, sufocado até a morte pela pressão do joelho de policial branco em seu pescoço durante uma detenção. O ato de ajoelhar-se em protesto em eventos esportivos foi criado em 2016 pelo jogador de futebol americano, Colin Kaepernick, como forma de expressar a opressão de seu país contra a população negra e lhe custou a carreira profissional.
A despeito dos desafios para atingir o patamar de zero carbono e cumprir o pilar “E”, essa Copa do Mundo de Futebol vem deixando um legado incomum ligado ao ESG diante do envolvimento dos atletas em torno do pilar “S”. Eles deixaram de lado a indiferença e abraçaram a defesa dos direitos humanos, da diversidade e inclusão, do compartilhamento de valores e aspirações para criar um mundo sem tantas desigualdades e opressões no país considerado o mais rico do mundo.
[1] Disponível em https://publications.fifa.com/en/sustainability-report/
[2] Disponível em https://carbonmarketwatch.org/https://www.lemonde.fr/en/football/article/2022/11/19/world-cup-2022-the-mirage-of-carbon-offsetting_6004859_130.html
[3] Disponível em https://www.theguardian.com/football/2022/may/31/qatar-world-cup-criticised-for-problematic-carbon-footprint-promises
[4] Disponível em https://www.nytimes.com/2022/11/16/sports/soccer/world-cup-migrant-workers.html
[5] Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=fAVrB2Wz1zc
YUN KI LEE – Sócio da Lee, Brock, Camargo Advogados, mestre em Direito Econômico pela PUC-SP e professor de pós-graduação em Direito
AMANDA CUNHA E MELLO SMITH MARTINS – Advogada com bacharelado e mestrado na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, coordenadora de consumidores na Comissão de Privacidade e Proteção de Dados da OAB-SP e pesquisadora no Legal Grounds Institute